Prova digital como prova científica: limites e perspectivas à extração de dados de dispositivos eletrônicos via Cellebrite

A natureza jurídica da prova digital: pré-compreensões necessárias

Embora a contemporaneidade debata se as provas digitais constituem, ou não, uma espécie de prova nova que abrange entidades imateriais [1], há certo consenso de que se está diante de categorias abstratas que guardam informações memorizadas ou transmitidas em formato binário cujas fontes, meios e elementos probatórios merecem melhor reflexão e maior aprofundamento [2].

Enquanto o documento informático, para efeitos legais, deve ser considerado abrangido pelas disposições do artigo 232 do Código de Processo Penal [3], a prova digital é aquela colhida, de forma direta, desde um dispositivo informático, o que faz com que deva ser concebida como o conjunto de dados informáticos que se encontram impressos nos componentes eletrônicos e que, portanto, correspondem à memória do sistema informático em questão [4].

O documento informático, nesse fôlego, é a representação de um fato (intermediado por palavras, sons, imagens etc.) incorporada a uma base material (o suporte de tradutibilidade da sequência binária finita), por intermédio de um método digital. Este documento digital, lado outro, se diferencia do documento analógico, que nada mais é do que a mesma representação de um dado da realidade, mas incorporada a uma base material por um método analógico.

Produzir a prova digital consiste num ciclo de atividades estritamente regradas pela Digital Forensics, que pode ser traduzida por Ciência Forense Digital. A quebra da metodologia de obtenção, transformação e custódia dos dados digitais demanda a sua inutilização [5]. Trata-se de um defeito forte o bastante para tornar a prova não confiável, o que enseja o seu desentranhamento para garantir a formação de uma decisão amparada em procedimentos metodologicamente válidos.

Sem embargo, o fenômeno das provas digitais provoca certa inflação no sentido de invasão, no Processo Penal, de saberes especializados [6]. De um lado, a necessidade de se revisar o papel da perícia naquele campo da processualística, em direção às perícias particulares e não apenas ao modelo de centralização da prova pericial estatal, como nos sistemas continentais [7], que tratam o perito como “auxiliar do juiz”. De outro, a necessidade de se regulamentar a prova científica. Pode-se então afirmar, juntamente com Elena Maria Catalano, que a prova científica desloca a prova oral de seu papel de “rainha das provas”, também, em virtude de dinâmicas patológicas ou da aplicação do best evidence principle e do surgimento de uma prova lato sensu documental, de formação extrajudicial, cristalizada em um suporte analógico ou digital [8].

Prova digital como prova científica: controvérsias acerca da extração de dados por meio do dispositivo Cellebrite

O estatuto epistemológico dos meios probatórios técnico-científicos se encontra fundado na ciência e na técnica, vale dizer, na validação científica do método [9]. Uma prova científica deverá, dada a sua natureza, possuir validade, e, por mais relevante que possa parecer, a sua introdução, no processo, quando destituída de fiabilidade, não traz benefício algum; muito pelo contrário, aliás. Provas científicas coletadas sem obediência à metodologia prevista em certa área do conhecimento valem tanto quanto uma previsão sobre a culpabilidade do réu amparada na leitura das borras de café.

As provas científicas são meios probatórios que possuem características bastante peculiares. A partir da constatação de que as provas periciais e científicas necessitam de controle de admissibilidade, a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu outra categoria conceitual a fim de determinar o que pode ou não ingressar no processo. Trata-se do já mencionado conceito de fiabilidade, que, elaborada no marco do paradigmático caso Daubert, fixou três premissas: a) o papel de gatekeeper exercido pelo juiz quando da admissão da prova científica; b) a cientificidade e/ou fiabilidade como uma espécie de standard geral de controle sobre a produção da prova científica; c) a previsão de uma fase preliminar na qual a admissão deveria ser controlada de forma mais rigorosa pelos juízes.

Por seu turno, a Ciência Forense Digital, além de orientar a ambiência de investigação preliminar e servir de base para as discussões probatórias vindouras, a ocorrerem no âmbito dos processos judiciais, compreende a aplicação de técnicas de investigação e análise computacional com o objeto de determinar ou identificar possíveis fontes de prova penal [10].

Discussões dessa natureza têm vindo à tona, em especial, em se tratando de extração de dados de dispositivos eletrônicos por meio de ferramentas específicas utilizadas pelas agências de persecução estatal. Afinal de contas, se as provas digitais devem ser consideradas provas científicas, é consectário lógico que a sua extração, o seu manuseio e a sua introdução no processo exigem conhecimento técnico específico e métodos cientificamente validados.

Embora haja inúmeros julgados no Superior Tribunal de Justiça, corte responsável por uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional brasileiro, enfrentando termas afeitos à prova digital (mormente a necessidade de estabelecimento e manutenção da cadeia de custódia), são escassas as decisões que se debruçam sobre a natureza científica da prova advinda da extração de dados de dispositivos eletrônicos. Nesse contexto, o Tribunal já decidiu, aludindo à manifestação ministerial apresentada no caso concreto, em que foi utilizado o dispositivo Cellebrite, que “a extração de dados de aparelho celular é uma atividade de mero espelhamento da informação ali existente, sem alteração de dados existentes, para a qual não se exige formação específica, uma vez que as tarefas são executadas pelo equipamento de extração forense utilizado ao redor do mundo”, de modo que a ausência de perícia não seria capaz de influir na “preservação da autenticidade da prova, sobretudo porque houve o uso de equipamento forense notoriamente reconhecido, capaz de extrair dados de aparelhos celulares, por espelhamento, de modo seguro” (AgRg no RHC nº 195.921/MG, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 27-5-2024, DJe de 3-6-2024).

Nos Estados Unidos, a discussão também tem avançado

No caso USA v. Williams (n. 22-10316, 5th Cir., 2023) [11], o réu contestou a introdução de evidências extraídas de seu celular usando a tecnologia Cellebrite. A alegação defensiva foi no sentido de que Tribunal Distrital errou ao permitir que um investigador policial introduzisse no processo a extração de dados via Cellebrite sem ostentar qualificação como perito sob a Federal Rule of Evidence 702. O Fifth Circuit Court, contudo, confirmou a decisão, ao argumento de que, quando as forças policiais usam o Cellebrite para extrair informações de um telefone, e um jurado leigo não precisar de interpretação adicional para entender essas informações, a parte não precisa introduzir a evidência por intermédio de um perito. O Tribunal assentou que o investigador testemunhou acerca da forma pela qual ele baixou as informações dos telefones usando o dispositivo Cellebrite, sem, contudo, tratar da confiabilidade do software para além do fato de que o investigador verificou novamente alguns dos relatórios olhando diretamente para o material fonte nos próprios telefones. Operar um dispositivo Cellebrite e entender seu relatório requerem conhecimento do âmbito de uma pessoa leiga razoavelmente experiente em tecnologia, independentemente do testemunho do investigador de que ele era um operador e examinador “certificado”.

De outro lado, o Tribunal do Sexto Circuito reconheceu que interpretar um relatório gerado pelo Cellebrite para o júri exige que a testemunha “aplique conhecimento e familiaridade com computadores e o software forense específico muito além daquele da pessoa leiga comum” (United States v. Ganier, 468 F.3d 920, 926 [6th Cir. 2006]). Na ocasião, a corte comparou o Cellebrite a testes especializados realizados por médicos, como exames de sangue de paternidade, e observou que os profissionais da medicina, ao testemunharem sobre os resultados, estariam sujeitos aos requisitos da Federal Rule of Evidence 702 para depoimento de peritos.

De igual forma, o Tribunal do Quarto Circuito decidiu pela aplicabilidade da Federal Rule of Evidence 702 ao depoimento de um examinador de dados forenses acerca da extração e tradução dos dados mediante um software semelhante ao Cellebrite (United States v. Yu, 411 F. App’x. 559, 566-67 [4th Cir. 2010]). A Corte observou que a testemunha explicou “a técnica que os examinadores forenses normalmente usam para extrair dados”, que eles usam software forense para remover dados, e que “traduzem a informação bruta em um formato visualizável”, concluindo que “o processo de extração de dados forenses requer ‘algum conhecimento especializado ou habilidade ou educação que não está em posse dos jurados’”.

Em United States v. Tony Lee McLeod (n. 16-50013, de 2019), por sua vez, o juiz Donald W. Molloy divergiu parcialmente da maioria e, ao defender a natureza científica da extração dos dados do telefone celular do acusado, explicou que, embora Jackson (o testigo) tenha testemunhado que possui múltiplas certificações em perícia computacional, nenhuma delas se relacionava ao Cellebrite, além do que todas foram obtidas após sua análise do celular da vítima. Ele não era certificado pela Cellebrite para realizar extrações, parecia incerto sobre os tipos de extrações via Cellebrite que poderiam ser realizadas, e não sabia quando o dispositivo que utilizou foi atualizado pela última vez.

A Suprema Corte dos Estados Unidos até teve a oportunidade, mas acabou não enfrentando a matéria. Por ocasião do já referido caso Tony Lee McLeod v. United States, um detetive, baseando-se em sua experiência prática com o uso da tecnologia, testemunhou sobre como utilizou o dispositivo Cellebrite durante a investigação. O réu, diante da decisão do Tribunal do Nono Circuito que validou tal testemunho, manejou writ of certiorari à Suprema Corte, que negou o pedido e portanto não analisou o mérito da arguição da defesa no sentido de definir se o uso da tecnologia Cellebrite para extrair evidências digitais forenses de um telefone celular requer conhecimento especializado ou técnico, de sorte que a evidência deve ser apresentada em julgamento por um perito qualificado, nos termos da Federal Rule of Evidence 702, ou se pode ser apresentada por intermédio de um testemunho leigo e não se sujeitar a padrões rigorosos de confiabilidade.

Conclusão

A toda evidência, do percorrido até aqui se pode perceber que, porquanto as provas digitais são meios probatórios que possuem singularidades marcantes, a compreensão quanto à sua natureza está diretamente ligada à sua capacidade de provar, que deve ser afiançada por metodologia científica de extração, manuseio e apresentação dos dados. A utilização, em larga escala e em investigações criminais e processos penais dos mais variados matizes, de ferramentas para tanto, como o globalmente difundido Cellebrite, torna ainda mais inadiável a necessidade de considerá-las provas científicas, de sorte a abrangerem um grande conjunto organizado de conhecimentos a partir de aspectos de autoridade epistêmica, da transparência do processo inferencial e da confiança social na legitimidade dos vereditos em processos criminais [12].

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[1] DANIELE, Marcello. La prova digitale nel processo penale. Rivista di Diritto Processuale, a. LXVI. n. 2, 2011.

[2] Esta descrição foi desenvolvida pelo Scientific Working Group on Digital Evidence (SWGDE) e pode ser encontrado disponível em: https://archives.fbi.gov/archives/about-us/lab/forensic-science-communications/fsc/april2000/swgde.htm. Acesso em: 18 jun. 2025.

[3] Art. 232. Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares.

[4] PAOLETTI, Alessandro. La ricerca della prova penale nell’era delle nuove tecnologie informative: individuare e acquistare la prova “statica” archiviata all’interno di um dispositivo elettronico. Milano: Key, 2020, p. 21-22.

[5] O procedimento da cadeia de custódia compreende um sistema de controles epistêmicos essenciais à reconstrução idônea e fiável do que ocorreu no mundo dos fatos. Isso para evitar ou pelo menos diminuir os riscos de erros judiciários; para aumentar os controles internos e externos da decisão judicial, mormente do veredicto; para afastar ou diminuir os subjetivismos judiciários, as presunções, crenças e o senso comum. Essa sucessão de eventos concatenados, em que cada um viabiliza o desenvolvimento do seguinte, garante a integridade do indício para que seja reconhecido como prova material. Esses eventos devem ser descritos de forma pormenorizada, em um registro documental, de modo a validar a evidência e permitir sua rastreabilidade, sendo seu objetivo-fim garantir que a evidência apresentada ao julgador se revista das mesmas propriedades probatórias do que coletado no local de crime, ou seja, que demonstre a realidade fática (mesmidade). Sua principal função é assegurar, de maneira fiável, a autenticidade da prova, ou seja, preservar as condições de fidedignidade, de integridade, originalidade e idoneidade.

[6] RIVELLO, Pier Paolo. La prova scientifica. Milano: Giuffrè, 2014; DOMINIONI, Oreste. La prova penale scientifica. Milão: Giuffrè, 2005.

[7] Para uma crítica sobre esta transformação, cf. VÁSQUEZ ROJAS, Carmen. De la prueba científica a la prueba pericial. Madrid: Marcial Pons, 2015.

[8] CATALANO, Elena Maria. Il metodo del controesame sul letto di procuste: le insidie e le sfide della prova scientifica. In ________. Le erosioni silenziose del contraddittorio. Torino: Giapichelli, 2017, p. 148.

[9] DOMINIONI, Oreste. La Prova Penale Scientifica: gli strumenti scientifico-tecnici nuovi o controversi e di elevata specializzazione. Milano: Giuffrè, 2005. p. 36.

[10] MENDES, Carlos Hélder C. Furtado. Prova penal digital: direito à não autoincriminação e contraditório na extração de dados armazenados em dispositivos informáticos. 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024, p. 336-337.

[11] Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/ca5/22-10316/22-10316-2023-10-13.html. Acesso em: 18 jun. 2025.

[12] ROBERTS, Paul; ZUCKERMAN, Adrian. Criminal Evidence. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 469.



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